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14 de fevereiro de 2018Primeiríssima edição da Quasar, onde nos encontramos em modo super tosco, ainda. No momento em que essa publicação vem ao mundo, fugimos da proposta, que é lançá-la primeiramente por email. Mas a próxima edição vai funcionar assim - digamos que seja um teste -, então recomendo que assinem e leiam quando o email chegar!
O conteúdo da primeira edição faz os butiás não caírem, mas se atirarem do bolso. Dois novos poetas dentre a quantidade imensa de artistas secretos que não conhecemos dão as caras, e eles são incríveis. Adentramos o universo da filosofia metafísica partindo de questionamentos materialistas de um graduando em física. Passeamos por aquilo que um dia foi Porto Alegre.
Estão disponíveis duas formas de navegar: clicando nos títulos do índice abaixo, ou rolando a página. Faça da forma como preferir mas não deixe de fazê-lo.
Apertem os cintos, seguram as pontas!
.:. ÍNDICE .:.
– COLUNA DALU, por Luiza Zimmer
– OS SERES E O MUNDO, por Vinícius Bernardes
– DOSE DE SOMA, por Leonardo Dominiscki
– PLANETA TELEX, por Victor Wolffenbüttel
LUIZA ZIMMER
Queria que a mulher de agora
Estivesse no lugar da menina,
Que pensava ser mulher,
Quando aqueles garotos,
Que não sabem ouvir
A chamaram pra sair.
A mulher sabe se fazer ouvir
Sabe até onde ir
A mulher já não machucam
Embora de vez em quando ainda chore.
Mas a menina
A menina não sabia
O limite
O nome
O grito que deveria dar
VINÍCIUS BERNARDES
Os cientistas buscam infindavelmente encontrar explicações da maneira como o universo ``funciona''. A motivação para essa busca parte da premissa de que essas explicações existem.
Algumas pessoas podem dizer que elas não existem: todo o universo que observamos é uma construção de conceitos criados dentro da própria mente humana, ou talvez dentro das mentes dos animais, das plantas, das bactérias, dos seres em geral (ou talvez as bactérias sejam também parte da ilusão, ou talvez as plantas também sejam... ou talvez os outros seres humanos sejam ilusão para o observador).
Será que também somos ilusão?
Quando abrimos os olhos e observamos o mundo ao nosso redor podemos enxergar várias coisas. Como, por exemplo, aquele vaso de flores. O que quero dizer, é claro, é que vejo aquele vaso e vejo aquelas flores dentro do vaso. Estou dizendo que vejo aquela forma de vaso, com coloração da argila com que o vaso é feito, com as sombras do vaso iluminadas pela luz do ambiente. E vejo as formas verdes das folhas, o canos finos e retos apontados para cima com um agrupamento de pétalas rosas na parte superior. O que quero dizer, na verdade, é que vejo um padrão de cores espalhadas sobre meu campo de visão que faz minha mente dizer: isso é um vaso de flores.
Agora: esse vaso de flores existe mesmo ou eu estou criando-o na minha cabeça? De fato, as flores e o vaso podem existir, mas a ideia completa e uniforme de um vaso de flores é criada pelo próprio observador. Mas, então, a flor pode ser simplesmente uma criação da nossa mente ao juntarmos as ideias de pétalas, caule e folhas, um artifício facilitador do cérebro, já que, em geral, sempre vemos essas ideias acompanhadas umas das outras. Se prosseguirmos com esse pensamento, nos damos conta de que qualquer coisa que vemos é um conjunto de ideias -- e sensações -- que o nosso cérebro agrupa e organiza.
Assim como as imagens, os sons, os cheiros e principalmente conceitos mais abstratos são construídos dentro da própria mente. Sabemos muito bem que o amor, por exemplo, é um conceito que varia muito para cada indivíduo, o que nos leva a pensar que esses conceitos são criados dentro da própria mente. Também o conceito de flor varia para cada indivíduo, mas somos enganados pela presença física da flor, que serve como um ``atrator'' dos conceitos para uma mesma ideia.
Dois seres observando a mesma imagem, portanto, vêem-na diferente. É claro que suas visões são similares, se os seres comunicam-se entre si, mas cada visão depende do estado dos seres. Ou seja, depende de onde o ser está, quando o ser está, quanto o ser está (de quê?), por que o ser está, como o ser está...
Podemos pensar então que essa maneira prática de agrupar conceitos e classificá-los é um processo para facilitar a comunicação, a cognição, a viagem dos seres pelo mundo. Mas os seres não necessariamente percebem que essas construções ocorrem nas suas mentes, e que elas podem, inclusive, atrapalhar a visão deles.
Uma vez que percebam a mutabilidade dos conceitos em suas mentes, os seres podem passar a ter um controle maior desses conceitos e, portanto, de seus próprios mundos. Essa é uma maneira de visualizar a falta de solidez das percepções dos seres: cada ser vive em seu próprio mundo, dentro da sua própria mente. Mas como eles interagem entre si? Como eles podem estar todos no mesmo mundo sendo que o mundo está na mente de cada um? Há uma inconsistência.
Outra forma de comparar os seres e o mundo é como a ciência faz (ou fez): o mundo é um único palco onde todas as coisas ocorrem baseadas em determinadas ``leis''. Cada indivíduo tem sua própria visão devido ao seu próprio funcionamento. Logo o vaso de flores está lá para quem quiser ver, mas isso se alguém quiser ver um vaso de flores. Pode ser que algum ser queira ver o vaso e a flor como conceitos distintos e nunca unificá-los. Pode ser que algum ser queira juntar o conceito de um vaso de flores com as abelhas que ficam em torno das flores. Mas, segundo essa visão, tudo está lá: como um único ou infinitos conceitos.
Com essa visão, surge uma classificação entre os seres: a loucura. Se a grande maioria dos seres que se comunicam entre si atribui um certo conceito a um elemento desse palco, mas algum ser em especial não o faz -- e vê o tal elemento de uma maneira completamente diferente --, esse ser em especial não é compreendido pela maioria, que passa a justificar suas visões diferentes como um estado de ``insanidade''.
É claro que se esse conceito diferente for útil para a maioria dos seres e eles forem capazes de perceber, o ser louco pode ter atribuído a si o conceito de ``divino'' pelos outros, mas ainda assim diferente e, de certa forma, afastado da comunicação entre a maioria. Veja que o mundo da perspectiva do ser diferente é, para ele e para os outros, diferente do mundo da perspectiva dos outros seres. Voltamos à multiplicidade de mundos, e à presença dos mundos nas mentes dos seres.
Uma visão leva a outra, contraditórias entre si. Observamos uma dualidade: o mundo está na mente dos seres e os seres estão nos espaços do mundo.
LEONARDO DOMINISCKI
Um dia a experiência me disse que inteligência é tomar os riscos certos
E, de certo modo, e em essência, eu só conhecia os riscos de quando eu rasurava os versos
Mas entrar na tua foi tentar servir uma receita vegana de sarapatel
Tentar filmar um parkour num arranha-céu, descer da lua de rapel
E eu sonhei e acordei contigo e me perguntei em que dimensão eu tava
Porque eu sempre fui aquele que na brisa nenhuma mina entrava
Quando eu mesmo me fiz ferida e eu me perguntava
Porra, onde que tá a coisa errada?
Logo eu, que nunca fui de sempre querer estar com muita mina
Mas estar sempre com uma mina que é muito
Pra, da beleza de um momento, de repente, fazer lágrima desaguar no pescoço
E na maré de um sorriso, fazer arrebentação e contornar o rosto
E eu me arrisco porque meio que vou inteiro demais
Não sei jogar o jogo, não sei dançar a dança e com as mãos nos teus quadris eu sigo o baile
Não ligo se o amor é cego, se eu puder leu teu corpo em braile
E, como Morrisey disse, a paixão é uma mão na luva
E entendi melhor a vida andando torto de mãos dadas na chuva
Você é fuga, é risco
Me arrisco dizer que é um misto de Donnie Darko, Antes do Amanhecer e Beleza Americana
Porque você é um mistério, você me encanta e você me desperta
E eu acordo, ainda que não na mesma cama
Mas amor é como vinho e ama quem deixa fermentar
Eu me derramo pra você nesses versos
Porque momentos são o melhor que alguém pode presentear
Por acaso, ou não, ocasião pra gente se encher de amor ou paixão serão várias
E por um instante você até pode ter pensado que eu não ia te fazer feliz
Achou errado otária
VICTOR WOLFFENBÜTTEL
Acho que Porto Alegre é a única cidade grande que já conheci. O Centro Histórico de Porto Alegre, especificamente, é o mais perto que já estive de algo realmente urbano, daquilo que aparece nos filmes nova iorquinos de pessoas e calor e o ar pesado e a sujeira em todos os cantos.
Chegar em Porto Alegre no final da tarde é uma experiência de estímulos incessantes e aterrorizantes. Quando se desce do trem já dá pra entender o que está por vir: uma manada luta pra sair primeiro do vagão e pra chegar primeiro na escada rolante, e depois a multidão se dirige lenta e presumivelmente pra catraca, e depois sabe se lá pra onde.
O Mercado Público cheira a tudo ao mesmo tempo, e imagino que aquelas pessoas que tem um sentido mais aguçado que outros, quando o caso do sentido aguçado ser o olfato, entram em parafuso e saem correndo. O cheiro é de peixe e de erva e fumo e café e carnes e salames defumados e, ao mesmo tempo, mijo.
Mas eu não queria passar tempo nenhum dentro do Mercado e só atravessei ele, quase correndo, porque fico confuso lá dentro. No largo vendem todo o tipo de coisa, mas especialmente refri e água e, quando são mais ousados, ceva.
Subindo a Borges se vê gente de tudo que é tipo, mas especialmente os vendedores. Um brigadiano parou na minha frente pra comprar um cabo de caixa de som de um senegalês. O parceiro dele passou um pouco batido e depois viu que o BM tinha parado, girando o corpo de volta. Podia até parecer que os dois estavam fazendo uma abordagem, se não fosse tão informal, se não estivessem perguntando por preços e modelos.
Um homem de meia idade passou por mim com uma long neck de Budweiser na mão e só pude imaginar o quão quente aquilo deveria estar, ele segurando por baixo, o sol batendo com toda a força, imperdoável. Acabei me sentindo mais tranquilo por não ter comprado nada pra beber dez minutos antes.
Passei voando pela Salgado Filho, com medo que alguém batesse minha carteira. Costumo andar rápido, mas em Porto Alegre o ritmo parece até normal. Entre os maninhos de boné e bermudas caídas, os jovens de classe média que estão de polo e calça jeans e os senhores de idade avançada que andam de roupa social barata, eu até que me misturo bem, sinto que aqui pode ser como queira, e nesse momento eu queria estar de terno - sem nenhuma razão muito elaborada, só porque parece que a pessoa fica mais distinta.
Meu destino final nessa caminhada era um prédio de apartamentos no final da Salgado Filho, e funciona de uma forma que pra mim parece só ser possível numa cidade de verdade, em algum lugar grande: a entrada do prédio é numa galeria, o porteiro passa o dia inteiro conversando na frente da entrada com um taser no bolso - aquela maquininha de dar choque nas pessoas.
A entrada passa batido se tu não mora no prédio, e muita gente mora lá.
Depois da entrada, essa é a segunda coisa me espanta no prédio: a quantidade de pesssoas. O apartamento é tão pequeno, e parecem ter uns dez por andar, e o prédio tem uns vinte andares. A entrada é só uns elevadores na porcaria de uma galeria, como pode tanta gente morar ali em lugares tão pequenos e discretos?
Pegar o elevador é uma atividade totalmente individual, apesar de alguém como eu jurar que se trata de uma atividade social, onde se conhece um vizinho. Ninguém se conhece, não se importam e também nem tem como: são muitos apartamentos em muitos andares. Penso apenas na quantidade de histórias interessantes que devem se passar numa vila vertical como essa, acessada por uma galeria. Uma minicidade de densidade fantástica, onde quase nenhuma história se cruza apesar de viverem como um formigueiro.
Olhando pela janela do apartamento, tem uma praça fechada de copas de árvores. São lindas, mas penso que deve ser perigoso. Todos os meus pensamentos em Porto Alegre são dessa forma: deve ser legal, pena que é perigoso; não dá. O prédio de frente pra janela é daquela parede medianeira (impossível não pensar no filme). Alguns vizinhos construíram janelas de tijolo de vidro, e ainda bem que não conseguem ver através, porque estamos nus.
Tem uma quantidade grande de butecos no Centro Histórico, e me pergunto se o centro da boemia é realmente a Cidade Baixa, um bairro caro demais pra ter garrafa litro de Schin. A maioria desses bares inspira medo, talvez pela forma como estão dispostos na rua, meio que ocupando-a sem introdução: pum, de repente um buteco com uns velhos bebendo, e nenhuma decoração exceto pelas mesas que são de alguma marca de cerveja.
Os restaurantes são invisíveis, precisas ou conhecer ou passar por eles e voltar pra encontrá-los. Compramos cerveja no Zaffari pra beber com a janta. O Zaffari também é como os restaurantes e os bares: inserido no centro, muito menor do que a figura do Centro. Em Novo Hamburgo, o Zaffari é um lugar, ir nele envolve pegar o carro, pagar estacionamento, procurar uma vaga, procurar um carrinho de compras, passar horas escolhendo detergentes, alvejantes, temperos, refrigerantes, margarinas, pão, carnes, escovas de dente, desodorantes, e, por que não já que está bem na minha frente, um chocolate: Snickers ou Crunch?
Entramos e saímos totalmente invisíveis de um lugar totalmente invisível num centro que parece nem sentir que qualquer coisa existe, como se fossemos uma verruginha nas costas de um ogro.
Mesmo sendo barulhento, me sinto mudo dentro do apartamento, um dos pequenos LEDs ligados dentro da lâmpada. Aproveita-se essa mudez pra ser mais barulhento, deve-se ser um anônimo com ânimo. Aqui ninguém me conhece e nem vai, porque não somos familiares. Sentir-me tão pequeno é estranho, mas serve pra agora. O que será que os outros vizinhos, tão perto de mim, estão fazendo agora?
O Centro Histórico de manhã parece alguma coisa histórica se vista no futuro, eu diria. Um futuro distópico feito em algum filme. Como se fosse a parte mais marginal de Los Angeles em 2050 (sim, estou pensando no Blade Runner, apesar do filme ser laranja demais pra combinar o cenário que tento transmitir).
A distopia tem um pouco a ver com o clima: a manhã era cinza e meio fria, apesar de ser verão. Caminhei do Camelódromo até o Mercado passando por dezenas de lancherias que pareciam mais sujas que a rodoviária velha de Novo Hamburgo, algumas festas que estavam recém acabando, e muitas pessoas indo e vindo. As tacabarias já faziam jogo do bicho.
Não senti vontade de pegar o Trensurb e voltar pra casa naquele momento. Ainda faltavam três horas pra ir pro trabalho, então podia dar mais um passeio nada turístico. Passei pelo Mercado oitenta por cento fechado e voltei dando a volta pelo outro lado do largo, em frente às bancas. As bancas todas estavam abertas e os caras têm o hábito de te cumprimentar e te chamar se tu faz o mínimo contato visual. Eles querem os clientes dessa hora da manhã desesperadamente.
Comprei um café e um enroladinho de salsicha de um desses caras, e nenhuma das duas coisas estava tão ruim a ponto de eu pensar que meus três reais e cinquenta centavos foram desperdiçados. Caramba, em Novo Hamburgo eu não consigo comprar nem um Trident com essa grana. Com os dias de folga entre o momento que escrevo e a hora que me alimentei, posso dizer que não houveram complicações gastrointestinais, então, quem sabe, se estiveres se sentindo corajoso, se for pouco sensível a sujeira aparente, eu recomendo um lanche das bancas quando estiveres sem grana (e poderia recomendar muito mais se eu já contasse das manhãs que passei no MILKS).
Não parei pra comer. Descobri que gosto mais da comida quando estou de pé, e não me importo de andar. Passei por mais moradores de rua, vários ainda dormiam. Dependendo do lugar, é difícil dizer se tem mais pessoas indo pro trabalho ou dormindo. Não parecem ser ruins, apenas abandonados e sujos.
Me distraí com a música nos fones e com a imagem de três jovens que pareciam ser um pouco mais jovens que eu, fumando do lado de fora da porta de uma festa que já deveria ter acabado faz tempo, uma boate que não tinha nada a ver com uns caras tão novos. Um dos guris estava encostado na parede e o outro tinha o braço passado no pescoço da namorada e os três não paravam de sorrir macabramente, como se estivessem vendo alguma verdade secreta muito engraçada em todo o centro.
(não é recomendável andar distraído no centro de Porto Alegre, já que é fácil dos ladrões identificarem a distração e te levarem a mochila com tudo que tu mais ama, e isso inclui alguns livros e o Kobo onde tem mais livros e uma das tuas melhores mudas de roupa e, sei lá, o único guarda chuva que durou mais de um mês em toda a tua vida. Mas é de manhã e tem tanta gente na rua que me parece até ofensivo não me dar o direito de ficar distraído, porque afinal quem me roubaria nesse horário com essa quantidade absurda de gente passando pra lá e pra cá. Eu quero confiar nas pessoas e, por favor, me deem essa chance.)
De dentro do meu transe, ouvindo o álbum Sunga da banda Holger, certamente a coisa mais indie acontecendo em Porto Alegre naquele momento, um cadeirante chama a minha atenção. Tu vê como são as coisas, eu jurava que ele ia pedir dinheiro e já estava prestes a inventar alguma coisa pra fugir quando começou a falar: alcança pra mim, tu que é alto? Ele apontava pra algum lugar e aí eu vi que era uma caixa de frutas de madeira em cima do telhado da parada do ônibus. Comecei a manobra mas notei que seria impossível de fazer com um café na mão e pedi pra ele segurar meu copo. Mesmo assim era uma coisa difícil, porque eu sou alto mas não tanto, sou alto médio, e normalmente não alcanço onde a caixa estava. Tive de apoiar minhas duas mãos e elevar os braços como eu faço todo dia de manhã na barra de exercícios, então heroicamente soltar uma das maõs e me segurar num braço como nunca faço na barra de exercícios, alcançar a caixa e descer lentamente numa manobra que valeu por uma semana de academia pra quem não faz academia. Entreguei a caixa pra ele e ele me desejou uma boa sexta feira, e eu disse que pra ele também.
Durante uns cinco minutos, não consegui conter o constrangimento dentro da minha cabeça por pensar mal quando nossos olhos se cruzaram. Como funciona a maldade na nossa mente, como foi que eu fiquei tão automaticamente malicioso? Talvez tenha a ver com o cenário, toda a sujeira, mas talvez não, eu seria dessa forma em qualquer lugar do planeta.
Enquanto deslocava-me, meus pensamentos foram mudando de foco e não pude deixar de pensar na centena de lancherias e fruteiras, que toda a salsicha e massa de pastel e bananas e óleo de soja e pedaços de frango e carne tem que chegar aqui de algum jeito, porque não são feitos aqui e toda essa gente precisa comer de manhã, de tarde, de noite, e alguém tem que produzir isso em algum lugar e quem são essas pessoas e será que elas imaginam toda essa gente, pensam nessa gente, ou é óbvio que isso é sem sentido: produzir, transportar ou comprar, tanto faz, envolve todo mundo e ninguém ao mesmo tempo.
Parei por um minuto ao lado do Mercado, escorado numa mureta em frente a umas fruteiras. Observei o alto de Porto Alegre e como ele mudou da lembrança que eu tinha de pequeno, que talvez seja romântica mas de uma forma ou outra não pode ser outra coisa que totalmente diferente do que eu vejo agora: todos os prédios são cinzentos, independente da cor verdadeira que eles tenham. A cidade parece uniformemente destruída.
Ninguém prende o olhar por mais de cinco segundos, a cabeça gira como uma coruja em ângulos impossíveis, e acredito que os moradores de Porto Alegre vão ser os primeiros a participar do início do novo processo adaptativo, onde o ser humano terá o pescoço totalmente rotacional da ave de rapina. É importante para sobreviver, conseguir enxergar todo o entorno, ou pelo menos eles acham que é, porque pode ser perigoso não ver de onde vem a criminalidade às sete e meia da manhã.
Olham pra mim com reprovação, porque estou absolutamente parado, atrapalhando o trânsito, tomando café. Estou até com o celular na mão, pra causar discórdia total entre os passantes que devem torcer que eu seja assaltado, pra aprender e pra justificar o seu medo. Pelo menos eu torceria se não estivesse totalmente cético quanto à violência aquela hora da manhã, tanta gente acordada, acordando ou dormindo. Estou sensível e chocado. Parece que o povo de Porto Alegre é endurecido demais pelo centro ou o centro foi endurecido demais pelas pessoas?
Antes de entrar na estação do Trensurb, olho mais uma vez pro Mercado. Depois que ele pegou fogo, passou anos com os tapumes da reforma nos andares superiores, partes interditadas e uma aparência abandonada. Olho pra ele de novo: os tapumes se foram, mas posso jurar que continuam lá.